Filmicca: Brutais sutilezas | BOM TRABALHO por Isabela Lisboa
PLANO DETALHE por Isabela Lisboa Colunista FILMICCA
Brutais sutilezas
O exato oposto de male gaze no cinema, no melhor dos sentidos, talvez seja um filme sobre homens, dirigido por uma mulher, cuja fotografia, também assinada por uma mulher, passeia livremente com a câmera sobre peitorais à mostra. Não para objetificá-los, como é comum no caso delas, mas para revelar a fragilidade contida em sua força, os desvios de certeza, a impotência ao encarar angústias.
Até hoje, poucas obras conseguiram dar conta dessa complexa inversão, por muitos motivos. O imaginário popular ainda tem muito de patriarcal, a porcentagem de mulheres em posições de comando na indústria cinematográfica é bem menor que a de homens… Mas pode-se dizer, com a licença do trocadilho, que a cineasta francesa Claire Denis fez um ótimo trabalho ao lançar, em 1999, um filme que flagra a masculinidade em calças curtas.
Ambientado no Djibouti, pequeno país africano, o longa-metragem Bom Trabalho apresenta as memórias do Sargento Galoup (Denis Lavant) em seus tempos de comandante da Legião Estrangeira Francesa. Enquanto o personagem escreve diários de recordação, narra, em retrospecto, bélicas e perturbadoras lembranças, quase todas ligadas a um soldado específico, o intrigante e sedutor Gilles Sentain (Grégoire Colin).
O jovem chama a atenção de Galoup assim que integra a campanha. Com o passar dos dias, desperta nele sentimentos difusos e contraditórios, jamais verbalizados, mas refletidos diretamente em seu comportamento até então exemplar. Um misto de ciúme e desejo reprimido faz Galoup perseguir Sentain até que limites morais e éticos sejam ultrapassados, o que coloca sua carreira no exército em xeque.
À espreita de um alvo não tão distante – já que seu pai foi militar – , Claire Denis mira um universo de aspereza e consegue extrair dele alguma humanidade. A quase morte de Sentain evidencia a quase vida de Galoup, um homem que preenche seu vazio existencial com uma obsessão mesquinha. Diálogos pontuais e a narração contida corroboram para a atmosfera de escassez do cenário desértico onde os soldados executam suas rotinas, que incluem atividades físicas, missões militares e tarefas domésticas.
Do paralelo com a colonização ao trato de questões tão íntimas, a diretora observa desejo, amargura, solidão, arrependimento e liberdade. Na deslumbrante fotografia de Agnès Godard, o verde escuro sintético – que veste corpos em treinamento, forjando coreografias de combate em que nenhum lado vence – contrasta na paisagem. Guerras não fazem parte da natureza, nem são por ela criadas. São invenções de cabeças de homens que, no fundo, só precisam perder o medo de dançar.
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A obra BOM TRABALHO, de Claire Denis, está disponível na FILMICCA, streaming nacional e independente de cinema autoral e cult, do clássico ao contemporâneo, incluindo lançamentos inéditos e exclusivos, com uma curadoria que valoriza filmes realizados por mulheres, histórias LGBTQIA+, narrativas negras, obras de novos autores e de diretores renomados do cinema mundial.
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Artigo Original: https://letterboxd.com/filmicca/story/brutais-sutilezas-bom-trabalho-por-isabela/